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"Notícias Magazine" - 7 Outubro de 2012

texto de Fátima Iken

Fotografia de Ricardo Júnior / Global Imagens

 

Arquitetura em Banho Maria

 

Largaram pranchas e croquis para se dedicarem à doçaria. Uma açoriana e um continental com raízes indianas, ambos arquitetos, deram a volta à vida e começaram a fazer doçaria tradicional açoriana em casa. Uma equação de sucesso no Porto.

 

Esta é a história de dois arquitetos que, cansados de recibos verdes, trabalho mal pago e precário na sua área, decidiram mudar radicalmente de vida. Como? Pondo o avental e cozinhando doces tradicionais dos Açores. Tudo começou quando Luísa Gonçalves Nunes, açoriana da ilha Terceira, veio para o Porto estudar na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (FAUP), onde concluiu o seu curso. As saudades foram ganhando terreno. «A minha infância sempre foi muito ligada à terra. O meu pai era produtor de leite e agricultor. A realidade insular está-me na massa do sangue. A cozinha e a doçaria foi uma espécie de necessidade de compensar as saudades de casa, das receitas da minha mãe e da minha avó», explica Luísa. Com esses doces, Luísa, 37 anos, revivia a época de partilha de três gerações na cozinha, na Terceira, na sua casa em Doze Ribeiras, virada a poentee com as ilhas do Pico e de São Jorge no horizonte.

 

Depois de muita prática autodidata na cozinha, perseverança e alguma investigação, Luísa chegou à fórmula certa. Passou algum tempo a pesquisar nas ilhas açorianas sobre os doces típicos, tradicionais e conventuais, suas origens, história, raízes e modos de confeção, sobretudo a partir de entrevistas e relatos orais das boleiras locais. «Foi difícil fazer as recolhas de algumas receitas, porque havia quem não quisesse desvendar segredos. Mas com perseverança consegui. Treinei muito em casa, pesquisei, experimentei e hoje tenho as minhas próprias medidas.» Durante um mês, todos os dias ia aperfeiçoando as receitas.

 

Pensando bem, gastronomia e doçaria necessitam de medidas exatas e criatividade para funcionar. Tal como com a arquitetura. Luísa acabou por desafiar um colega com quem trabalhava no atelier, Bruno Melo, que decidiu também deixar a arquitetura para se dedicar à doçaria. «O Bruno acabou por ser uma peça muito importante na vertente do merchandising, na ideia de dar a provar estes doces às pessoas que, no início, os achavam diferentes e estranhos», conta Luísa. Bruno sempre gostou de cozinha, de criar pratos. «Este caminho, ao conhecer a Luísa, já estava algo traçado. Foi muito engraçado», diz. Filho de mãe goesa e de pai beirão, ambos imigrantes em Moçambique regressados em 1974 a Portugal, os cruzamentos de cozinhas e mundos exóticos acabaram por ser ouro sobre azul no novo projeto.

 

E assim nasceu a marca Tia Lhú, uma onomatopeia da forma carinhosa como os sobrinhos açorianos tratam Luísa, com a pronúncia caraterística que fecha o «u» num som próximo de «ü». «O nome que acaba por evocar as minhas raízes, pelo sotaque.» Passados quatro anos do início da aventura, o desafio foi considerado ganho. Antes, pouco ou quase nada havia no Norte que divulgasse as raízes e cultura dos Açores, e o negócio acabou por ser um passaporte para a cultura das ilhas. Apenas a Casa dos Açores do Norte vai pontualmente fazendo a divulgação, mas tem poucas verbas e por isso torna-se complicado chegar a todos. Os bolinhos começaram por ser vendidos no Mercadinho dos Cléricos, na Rua Cândidos dos Reis, no Porto, numa pequena banca.

 

Depois, o projecto foi-se desenvolvendo devagar e, passados quatro anos, são já centenas as unidades confecionadas. Há ainda um espaço de venda no CCB, centro das artes de Miguel Bombarda.

 

Os doces que são um amor de perdição

 

Mas vamos ao que interessa. Aos doces. São uma verdadeira tentação e comem-se primeiro com os olhos. Espécies, camafeus, covilhetes da Graciosa, donas amélias ou queijadas da vizinha, verdadeiras obras de arte que saem das mãos de Luísa. E não só. Bruno Melo inventou novos produtos, como os topos de São Jorge, bolachinhas salgadas de queijo daquela ilha, e bolachas de licor de amora e chocolate negro.

 

Muitos dos doces indicam raízes alentejanas. «Chamam muitas vezes aos açorianos os alentejanos que aprenderam a nadar. E é assim mesmo, porque muitos dos habitantes são oriundos do Alentejo, Beiras e Algarve. Recentemente descobri um doce alentejano, que se chama popias ou pupias caiadas, que em muito se assemelham à espécies.» Outro doce com influência são as donas amélias, antigamente chamadas indianos, pela influência da rota das Índias. «É muito engraçado que elas originalmente tivessem este nome porque o meu sócio Bruno tem origens indianas.» Foram depois rebatizados em homenagem à rainha Dona Amélia, aquando da sua visita à ilha Terceira. «Ela terá gostado muito dos doces, de origem conventual.»

 

Para além destas doces perdições, o pequeno espaço Tia Lhú tem ainda à venda outras preciosidades: os tradicionais bolos lêvedos dos Açores, Kima (refrigerante de maracujá local), cerveja dos Açores, a especial Melo Abreu, compotas de araçá, vinho de cheiro e physalis (chamada localmente capucho), licor de amora, chás Gorreana e Porto Formoso, e, last but not least, os vinhos açorianos, da Cooperativa Vitivinícola do Pico. O Lajido, o primeiro herdeiro do velho Verdelho, e brancos e tintos.

 

O projeto Tia Lhú, entretanto, evoluiu, com a participação no espaço Peter Café Sport, no Cais Ribeira do Porto, agora com ar renovado. Para além dos apelativos gins tónicos, aqui pode agora provar também a gastronomia açoriana genuína, desde a alcatra no pote (carne que coze seis horas no forno e se desfaz na boca), aos torresmos de cabinho com vinha d'alhos ou a ambrosia, ovos e coalhada. Isto para além de outros pratos mais contemporâneos inventados por Luísa e Bruno. Dos baleeiros (pastéis de massa tenra com sabor a azeitona e atum) ou a torta enrolada de camarão e espinafres, entre outros.

 

Bruno e Luísa vão-se revezando entre a loja e o Peter Café, tendo chamado mais dois colaboradores para integrar o projeto. «O projeto vai evoluindo assim. Mas é sempre uma forma de divulgação daquilo que é o "cantinho perdido no meio do Atlântico", sobretudo na sua gastronomia, que é muito diversificada, assim como a sua cultura e gente, e vai-se consolidando assim um sonho, com muita paixão...», reitera Luísa, que não se arrepende, de todo, de ter deixado de lado a arquitetura para construir uma nova carreira. Porque dos sonhos se faz tudo.

 

Doces com tradição

 

Espécies: São uma das joias da coroa do portfólio da Tia Lhú. Doces circulares e exóticos, misturam o sabor das especiarias -erva-doce, noz-moscada, canela e pimenta branca numa explosão de maciez e crocante na boca. Angra do Heroísmo foi a capital da rota das especiarias no arquipélago, o porto onde passavam as naus, embora estes doces sejam dos mais conhecidos da ilha de São Jorge. «São um dos doces mais exóticos da doçaria regional. Hoje há pouca gente a fazê-los de forma artesanal e começam a ser industrializados, mas o sabor é muito diferente», diz Luísa.

 

Donas Amélias: Conhecidas pelo seu sabor intenso a canela e mel de cana, actuando este último como conservante natural, garantindo a evolução do seu sabor nos dias seguintes à sua confeção, e uma maior durabilidade. Além de se poderem comer a qualquer hora do dia, «podem ser consideradas como sobremesa, embora sejam mais aprazíveis como lanche, de preferência acompanhadas de vinho do porto Tawny ou Vintage, sendo o último mais aconselhado, tendo em consideração a sua maturação mais longa». Ou verdelho açoriano na versão de licoroso. É o casamento perfeito, pela secura do vinho que harmoniza no ponto com os doces.

 

Camafeus: Doce típico da Terceira com um intenso sabor a noz. «Tem um nome curioso, que poderá encontrar a sua origem nos antigos acessórios femininos que se usavam ao peito, ovalados e com um baixo relevo representando um rosto feminino.»

 

Caramelos: Doces de leite da Terceira. «Hoje em dia são muito conhecidos, mas descobri através de cartas de família que a receita veio do Brasil, de uns familiares nossos, em cartas dos meus tios-avós», lembra Luísa. Dão uma trabalheira insana a fazer, mas compensa.

 

Covilhetes: São agora mais conhecidas como queijadas da Graciosa. Têm uma massa tenra estaladiça e o recheio é feito à base de açúcar e leite e com um ligeiro travo a canela. O recheio tem uma consistência quase de caramelo.

 

Queijadas da vizinha: Referência a uma antiga vizinha de Luísa que brindava a família com estes bolos e cuja receita hoje atualiza como forma de homenagem.



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